A Reforma Tributária do Consumo e o Desafio de Tributar o Sistema Financeiro

A reforma tributária brasileira de 2025 avançou por um terreno em que quase nenhum país se aventurou: a tributação de serviços financeiros sob a lógica do IVA. Enquanto a maior parte das nações optou por isentar bancos e instituições financeiras para evitar complexidades técnicas, o Brasil decidiu incluí-los no novo sistema do IBS e da CBS, criando um regime específico com alíquota de 12,5% sobre o spread, a diferença entre os juros cobrados e o custo de captação.

À primeira vista, a proposta promete corrigir a cumulatividade e aproximar o setor financeiro da lógica geral do IVA. No entanto, a experiência internacional mostra que essa é uma das áreas mais difíceis de adaptar ao modelo de valor adicionado. A isenção tradicional simplifica o sistema, mas gera cumulatividade e reduz a transparência sobre o real custo tributário. A tributação, por outro lado, tende a corrigir essas distorções, mas ao preço de maior complexidade técnica e de um potencial impacto sobre os juros e o custo de capital.

A decisão de isentar a intermediação financeira em boa parte do mundo não decorre de uma escolha política de favorecer bancos, mas de uma limitação técnica. O valor agregado de um serviço financeiro é difícil de medir, pois não há preço explícito sobre o qual aplicar o imposto. O que o banco oferece é uma intermediação entre poupadores e tomadores, cuja remuneração se manifesta de forma implícita, embutida nas taxas de juros e spreads.

Nos bens e serviços tradicionais, o IVA incide sobre um preço de venda facilmente identificado em fatura. No caso das instituições financeiras, a operação ocorre por meio de fluxos contínuos e compostos, sem um preço unitário definido. Essa dificuldade de mensuração levou a maior parte dos países a isentar as operações de crédito, depósitos e derivativos, restringindo a tributação aos serviços explícitos, como custódia, corretagem e gestão de fundos.

Estudos publicados pelo Fundo Monetário Internacional sobre o IVA observam que aplicá-lo de forma convencional aos serviços financeiros tende a gerar distorções maiores do que a isenção. Por isso, o modelo europeu e as versões mais consolidadas de IVA preferiram aceitar uma ‘ineficiência administrável’ a introduzir um sistema de mensuração artificial do valor agregado financeiro.

Nos países em que há isenção, ao deixar de cobrar o imposto, também não há direito de crédito sobre os insumos utilizados pelas instituições financeiras, como softwares, consultorias, segurança, infraestrutura e serviços administrativos. Esses tributos pagos nas etapas anteriores se transformam em custo e são repassados ao preço dos serviços, especialmente nas taxas e juros cobrados.

Essa cumulatividade é invisível, mas real. O consumidor pessoa física não nota porque não há imposto explícito sobre o crédito. Para as empresas, os serviços financeiros se tornam mais caros porque não geram crédito tributário. Em outras palavras, a isenção para serviços financeiros quebra a neutralidade do IVA e cria um efeito cascata.

O novo regime do IBS e da CBS busca resolver essa distorção. A base de cálculo será o spread líquido, a diferença entre os juros recebidos e o custo de captação, e a alíquota final prevista é de 12,5% para as operações típicas de intermediação financeira. Entretanto, outros serviços do setor, como gestão de recursos, corretagem, administração de fundos, custódia e consultoria financeira, permanecerão sujeitos à alíquota geral do IVA, próxima de 28%. A apuração será feita por meio de declaração eletrônica e o crédito será automatizado para o tomador contribuinte. Assim, uma operação que antes não gerava nota fiscal passa a ser reconhecida como fato gerador de um imposto sobre valor adicionado.

A novidade tenta conciliar neutralidade e praticabilidade. Trata-se de uma engenharia tributária complexa, baseada na presunção de que a tecnologia fiscal brasileira (que conta com nota fiscal eletrônica, integração bancária e cruzamento de dados) será capaz de identificar, apurar e atribuir créditos de forma quase automática. O modelo aposta que a sofisticação tecnológica compensará as dificuldades conceituais que levaram outros países à isenção.

O caso brasileiro é singular no cenário global. Na União Europeia, a Diretiva 2006/112/CE estabelece a isenção ampla das operações financeiras e de seguros. Alguns países, como França e Suécia, permitem a opção pela tributação, mas o regime geral continua sendo isento. O Reino Unido segue lógica semelhante, admitindo tributação facultativa apenas para certos serviços. Fora da Europa, o Canadá e a Nova Zelândia, que mantêm modelos de IVA tidos como exemplares, também isentam a intermediação financeira, reconhecendo que a complexidade da base supera o ganho de neutralidade. A África do Sul adota solução parecida, tributando apenas serviços explícitos e reconhecendo que a isenção é uma ‘ineficiência administrável’. Já a Argentina tentou tributar ‘juros puros’ sob o IVA, mas enfrentou enorme dificuldade operacional e aumento do contencioso, levando à revisão parcial da medida. Nesse contexto, o Brasil surge como o primeiro grande país a estruturar um IVA sobre intermediação financeira, com base no spread e com crédito presumido e apuração automatizada.

Tributar o setor financeiro sob o IVA envolve um equilíbrio delicado. O modelo brasileiro introduz uma tributação explícita onde antes não havia, e que será sustentada por um sistema de créditos presumidos. Ao fazê-lo, coloca-se em contraposição ao pragmatismo das isenções adotadas mundo afora. O que o Brasil propõe é, de certo modo, um experimento: um IVA financeiro digital, que busca conciliar sofisticação tecnológica e coerência tributária.

A transição para esse modelo exigirá cuidado especial com o setor de inovação financeira. As fintechs e empresas que operam com modelos híbridos de intermediação poderão enfrentar dificuldades para enquadrar suas operações, comprovar créditos e absorver o aumento da carga efetiva. Se o regulamento não distinguir com precisão o que constitui intermediação financeira verdadeira, há risco de que a tributação recaia sobre atividades tecnológicas e de pagamento que não representam captação de recursos de terceiros. O impacto sobre essas empresas, muitas delas em fase de consolidação, pode ser significativo. A intenção de modernizar a tributação não deve resultar em barreiras à inovação nem na eliminação de segmentos que tornaram o sistema financeiro brasileiro mais competitivo e acessível.

Se a experiência se mostrar consistente, o país poderá oferecer uma alternativa à isenção que domina o cenário global. Caso contrário, apenas confirmará que a dificuldade de tributar o setor financeiro decorre da própria natureza econômica do crédito.

Referências
EBRILL, L.; KEEN, M.; BODIN, J.-P.; SUMMERS, V. The Modern VAT. Washington, D.C.: International Monetary Fund, 2001.

KEEN, M. “Taxing Financial Services under a Value-Added Tax.” IMF Working Paper WP/13/57, Washington, D.C.: International Monetary Fund, 2013.

EUROPEAN COMMISSION. Council Directive 2006/112/EC on the common system of value added tax. Brussels, 2006.

PWC & EUROPEAN BANKING FEDERATION. VAT on Financial Services – Options for Reform. Brussels, 2019.

OECD. Consumption Tax Trends 2022. Paris: OECD Publishing, 2022.

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