Ensaio sobre uma teoria da competência tributária do IBS e da CBS.
1. Introdução
Este artigo tem por objetivo refletir sobre a pergunta “o que a competência tributária relativa ao IBS e à CBS tem de específico” se compararmos com as características normalmente atribuídas à competência relativa à instituição de tributos previstos pela Constituição da República Federativa do Brasil, especialmente, antes da edição da Emenda Constitucional n. 132/23 (“EC 132/23”).
Se tomarmos competência como a aptidão de se instituir tributos, tal pergunta poderia ser examinada por diversas perspectivas: a material, que examina a diferença entre “bens, serviços e direitos” e outras materialidades; a subjetiva, que elucida quem pode instituir determinado tributo; e a deontológica, que investiga o modal deôntico relativo àquele exercício, se obrigatório – como no ICMS – se facultado, como na maioria dos tributos – ou se proibido – como nas imunidades.
O intuito desse artigo é tomar tais ângulos tendo como ênfase um elemento nuclear que é a ausência de facultatividade com uma consequente tendência à padronização, temperada por diversas exceções.
Avalio que esse aspecto revela muito sobre o regime jurídico dessas exações e merecem ser examinados de modo detido.
O percurso será demonstrar que não há facultatividade na instituição desses tributos, para, em seguida, buscar refletir quais valores que estão por trás dessa escolha – passando pelo que chamaremos de de “competência fiduciária da União para o IBS” – para então, examinarmos algumas consequências desse aspecto e certas válvulas de escape do novo sistema tributário.
2. Nossas reflexões.
A EC n. 132/23 prevê, no seu artigo 156-A, que “Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.”
O que há de tão peculiar, logo ali, nos dizeres do caput do artigo 156-A do Texto Constitucional? Observemos a expressão “Lei Complementar instituirá” e meditemos sobre ela. Trata-se de uma ordem, de um comando.
Normalmente, a previsão de criação tributos, pela Constituição, é pautada pela facultatividade. Utilizam-se termos como “Compete a União instituir impostos sobre (…)” (art. 153 caput), “Compete aos Estados e Distrito Federal instituir impostos sobre (…)” (art. 155 caput), “Compete aos Municípios instituir impostos sobre (…)” (art. 156) e assim por diante.
O exemplo mais eloquente dessa facultatividade é o Imposto sobre Grandes Fortunas, que embora presente no Texto Constitucional, até o momento não foi instituído.
No caso do IBS, porém, repita-se, a Constituição diz que a lei complementar “instituirá” tal exação. Trata-se de uma prescrição, não sendo, portanto, facultativa sua criação. Essa ausência de facultatividade pode ser um argumento forte para se entender que a lei complementar não só deve instituir o IBS, como deve esgotar os limites materiais impostos pela Constituição.
Tanto é assim que o inciso I do §1º do artigo 156-A da Constituição Federal aponta que o IBS “incidirá sobre operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos ou com serviços”. Aqui, mais um comando: “incidirá”. O não-incidir é violação direta a comando direto constitucional.
Há, sim, é verdade, um ponto relevante do comando acima que é o signo “operações”. Operações, entendo, são negócios jurídicos praticados que revelem um fornecimento em um ciclo de consumo. Por ciclo de consumo compreendo como fornecimentos que se iniciam com a produção e se encerram com alguém que usufrui, de modo final, aquele bem, serviço ou direito.
Assim, por exemplo, a prestação de serviços efetivada no contexto de vínculo empregatício, entre outras previstas no artigo 6º da Lei Complementar n. 214/25, não gera a incidência dos tributos por envolverem situações dissociadas de um ciclo de consumo.
Prossigamos, porém, com essa necessidade de incidência plena. Isso é reforçado pelo aspecto de que o IBS não poderia ser objeto de concessão de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais relativos ao imposto ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses previstas na Constituição (e na EC 132/23), tal como previsto no inciso X do §1º do que viria ser o artigo 156-A do Texto Constitucional.
Há fortíssimas razões para essa característica da não-facultatividade do IBS e da CBS e da proibição de concessão de benefícios fiscais desses tributos e gostaríamos de destacá-las.
A primeira delas é o que designamos de “competência fiduciária” da União de instituir o IBS, no sentido de que cria imposto destinado aos Estados, Municípios e Distrito Federal – que poderão, apenas, manejar as alíquotas caso não adotem a alíquota de referência – devendo agir, portanto, no interesse deles.
Notemos que o texto constitucional atribui à “lei complementar” a função de instituir o IBS. Tal Lei Complementar, nos termos do parágrafo único do artigo 124 da ADCT, deverá instituir a CBS. Portanto, trata-se de Lei Complementar instituída pela União, tal como ocorreu com a LC 214/25.
Nesse contexto, a ideia de autonomia financeira que é ínsita à federação não pode conviver com a noção de a União – pedimos vênia pelo lugar comum – “fazer caridade com o chapéu alheio”. Ao se servir da “competência fiduciária” de instituir o IBS, a União há de agir em benefício dos Estados, Municípios e Distrito Federal.
Assim, a proibição de instituição de benefícios fiscais não autorizados pela Constituição é cláusula pétrea, pois sua supressão importaria a tendência de eliminação de federação, sob o risco de se comprometer a saúde financeira de Estados e Municípios.
Seria possível acrescentar, ainda, uma noção de simplicidade e transparência. O sistema tributário mais, digamos assim, “padronizado” é mais simples. Torna-se fácil compreender como se dá a tributação com menos regimes tributários instituídos. Com a facilidade, surge a transparência no sentido de previsibilidade: quanto mais simples, mais fácil de ser acompanhado, acarretando uma maior visibilidade ao contribuinte do IBS e CBS.
A outra grande razão para que a competência do IBS e CBS seja exercida de modo amplo, sem renúncias no esgotamento do âmbito de competência, é o primado da neutralidade. A ideia de neutralidade é consagrada no §1º do artigo 156-A do Texto Constitucional. Ela pressupõe que o IBS e a CBS não devem interferir nas decisões econômicas dos sujeitos passivos, como previsto no artigo 2º da Lei Complementar n. 214/25.
O benefício fiscal, ou mesmo a fragmentação da incidência, afeta a neutralidade, pois importa um estímulo para que sejam adotados comportamentos, ora pretendidos pelo legislador, ora até inesperados, especialmente, quando se praticam atos elisivos para se aproveitar de benesses da legislação tributária. Por isso, apenas a concessão de diferenças tributárias previstas pelo texto da Constituição e da EC n. 132/23 são autorizadas.
Em acréscimo, diria que a alíquota do IBS é definida pelo Ente de destino, nos termos do inciso V do §1º do artigo 156-A do Texto Constitucional. O artigo 11 da LC n. 214/25 institui os critérios para se definir onde ocorre o “fato gerador” do IBS e da CBS (fato jurídico tributário), mas dentre as diversas regras, ali constantes, seria possível destacar que quando o consumo é presencial, a incidência se dá no local em que ocorre; quando é não presencial se dá no domicílio do destinatário ou adquirente, conforme o caso; e quando há operações com bens imóveis é no local em que este se encontra.
Quando a legislação assim faz, torna inútil a eleição de localização do estabelecimento para fins de vantagens tributárias, conferindo eficácia à neutralidade. Se a incidência se dá onde reside o consumidor, escolhemos a localização de nossas atividades por razões de logística, da facilidade junto a nosso mercado e aspectos que destoam da simples vantagem fiscal.
Reforçando tal aspecto, a alíquota instituída pelo Ente do destino será única, salvo certas exceções, conforme previsto no inciso VI do §1º do artigo 156-A do Texto Maior. Essa padronização reforça a neutralidade – não importa se vendemos um doce em formato redondo ou quadrado – embora a EC n. 132/23 preveja, como dissemos, certas exceções.
De fato, além do regime geral, foram previstos regimes diferenciados, específicos e favorecidos que devem orientar a lei complementar. É possível acrescentar, ainda, a desoneração da cesta básica, com alíquota zero, a desoneração de bens de capital, bem como a possibilidade de a lei complementar instituir hipóteses de diferimento e desoneração aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais e às zonas de processamento de exportação. A Constituição também prevê um regime próprio das compras governamentais, sem contar com as imunidades previstas e isenções autorizadas pela Texto Constitucional.
Os regimes diferenciados envolvem a redução de alíquotas, bem como a concessão de créditos presumidos para certas situações com operações com não contribuintes. No “Curso de IBS e CBS”, Cristiane Pires McNaughton e eu designamos tal possibilidade de “seletividade dirigida”[1], no sentido de que a Constituição fornece parâmetros setoriais para a Lei Complementar reduzir alíquotas em patamares previamente definidos. Há casos, assim, de alíquota reduzidas em 100% – como, por exemplo, dispositivos médicos -, em 60% – como alimentos que não estiverem em cesta básica – e em 30%, como serviços profissionais conforme previsto no artigo 9º da EC n. 132/23.
Os regimes específicos, por sua vez, não têm o intuito direto de garantir reduções, mas de levar em conta características de certos segmentos, observando diretrizes previstas pelo §6º do art. 156-A do Texto Constitucional.
São destinados a setores como os dos combustíveis e lubrificantes, dos serviços financeiros, das operações com bens imóveis, dos planos de assistência à saúde e concursos de prognósticos, das sociedades cooperativas, dos serviços de hotelaria, dos parques de diversão e temáticos, das agências de viagens e de turismo, dos bares e restaurantes, da atividade esportiva desenvolvida por Sociedade Anônima do Futebol, da aviação regional, das operações alcançadas por tratado ou convenção internacional, inclusive referentes a missões diplomáticas, repartições consulares, representações de organismos internacionais e respectivos funcionários acreditados e dos serviços de transporte coletivo de passageiros rodoviário intermunicipal e interestadual, ferroviário e hidroviário.
Aqui, repito, a ideia é que se leve em conta as características de certos setores, adaptando-se a tributação a tais peculiaridades. Assim, por exemplo, há previsão de tributação monofásica para operações com combustíveis e lubrificantes, a possibilidade de instituição de IBS e CBS sobre receitas das operações para instituições financeiras, possibilidades de previsões de não incidências para cooperativas e outros aspectos que foram endereçados pela Lei Complementar n. 214/25.
Já os regimes favorecidos abrangem o Simples Nacional, a Zona Franca de Manaus e as Áreas de Livre Comércio. As empresas do Simples poderão optar pelo regime regular, com creditamento, ou um regime favorecido, sem direito a crédito e gerando crédito, ao adquirente contribuinte, pelo valor do tributo pago. Já as operações que envolvem a Zona Franca e Áreas de Livre Comércio contam com casos de alíquota zero, de suspensão e de créditos presumidos.
A Constituição prevê, ainda, a necessidade de desoneração de bens de capital. A LC n. 214/25 trata de casos específicos de desoneração como o Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária (Reporto), o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (Reidi) e o Regime Tributário para Incentivo à Atividade Naval (Renaval), buscando manter sistemáticas que já existem, envolvendo, basicamente, a suspensão de IBS e CBS com conversão em alíquota zero quando adimplidas certas condições. Além disso, prevê um creditamento imediato na aquisição de bens de capital, que pode ser substituído por uma suspensão prevista em regulamento.
Com relação às hipóteses de diferimento e desoneração aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais, a LC 214/25 os institui em seus artigos 85 a 98, prevendo, por exemplo, o regime de trânsito, de depósito, de permanência temporária, entre outros. O artigo 99 da LC n. 214/25, por sua vez, institui regime de zona de processamento de exportação, prevendo suspensão, convertida oportunamente em alíquota zero, de IBS e CBS, nas importações ou as aquisições no mercado interno de máquinas, de aparelhos, de instrumentos e de equipamentos realizadas por empresa autorizada a operar em zonas de processamento de exportação.
Lembremos, ainda, que a própria CF prevê casos de imunidades para o IBS e CBS. As imunidades do art. 150, inciso VI, são aplicáveis tanto para o IBS como para a CBS. Já a prevista no §7º do artigo 195 da CF – destinada para entidades beneficentes e aplicáveis para as contribuições à seguridade social – não é aplicável. O inciso III do §1º do artigo 156-A, por seu turno, prevê que as exportações gozarão de imunidades, cabendo ao exportador a manutenção de créditos. Evita-se, assim, a chamada exportação de tributos. Já o inciso XI do mesmo §1º do artigo 156-A da Constituição prevê que não haverá incidência nas prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita.
Em síntese: o IBS e CBS devem ser obrigatoriamente instituídos – como de fato o foram – e exigidos em sua máxima extensão, de modo relativamente padronizado sem diferenças ou benesses, salvo as autorizadas pela Constituição ou pela Emenda Constitucional n. 132/23. Essa necessidade se dá por conta da neutralidade e da importância de a União, detentora da “competência fiduciária”, não criar, unilateralmente, benesses que prejudiquem a arrecadação de Estados, Distrito Federal e Municípios. E como exceção, da cobrança padronizada, há os regime diferenciados, específicos ou favorecidos, o tratamento destinado aos bens de capital, às compras governamentais, aos regimes aduaneiros especiais e às zonas de processamento de exportação, além das imunidades.
[1] McNAUGHTON, Cristiane Pires. McNAUGHTON, Charles William. Curso de IBS e CBS: de acordo com a EC N. 132/2023 E COM A LC N 214/2025. São Paulo: Editora Noeses, 2025, p. 21