REESTRUTURAÇÃO EMPRESARIAL E TRIBUTAÇÃO: O TRATAMENTO TRIBUTÁRIO DO HAIRCUT NOS PLANOS DE RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL

Danielle Bertagnolli

O ordenamento jurídico brasileiro tem enfrentado importantes debates sobre a tributação dos ganhos decorrentes de negociações empresariais em cenários de crise, especialmente nas operações de reestruturação empresarial. Entre essas questões, destaca-se a controvérsia quanto à incidência da contribuição ao Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) sobre os descontos concedidos no contexto de planos de recuperação judicial ou extrajudicial, prática usualmente denominada haircut.

A Lei n. 11.101/2005, ao tratar da recuperação de empresas, estabelece mecanismos para permitir a superação da crise econômico-financeira, preservando a função social da empresa e a manutenção de empregos. O ponto central deste estudo consiste em analisar se os descontos obtidos no âmbito da recuperação extrajudicial configuram receita tributável para fins de PIS e Cofins, à luz da isenção atualmente prevista para as recuperações judiciais.

O haircut é, essencialmente, a redução do valor nominal dos créditos, pactuada entre devedor e credores, como forma de viabilizar a continuidade da atividade empresarial. Do ponto de vista contábil, a operação gera um ganho financeiro ao devedor, correspondente à diferença entre o valor original da obrigação e o montante efetivamente pago.

As Leis n. 10.637/2002 (PIS) e 10.833/2003 (Cofins) definem como base de cálculo “o total das receitas auferidas no mês pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil” (art. 1º). A Receita Federal interpreta essa redação de forma ampla, incluindo no conceito de “outras receitas operacionais” os ganhos decorrentes da redução de passivos, ainda que não haja ingresso financeiro. Em soluções de consulta e autuações, o Fisco entende que a baixa de obrigações gera acréscimo patrimonial suficiente para integrar a base de cálculo.

Esse posicionamento, contudo, merece crítica: o haircut não representa riqueza nova, mas ajuste interno, destinado a viabilizar o cumprimento das obrigações remanescentes.

A Lei n. 14.112/2020, ao alterar a Lei n. 11.101/2005, introduziu expressamente no art. 50-A dispositivo que assegura a não incidência de PIS/Cofins sobre a receita obtida pelo devedor em decorrência do deságio concedido pelos credores no plano de recuperação judicial.

Essa regra afasta a incidência da contribuição ao PIS e da Cofins, indiretamente reconhecendo a incompatibilidade entre a tributação do deságio e a finalidade da recuperação judicial, conferindo neutralidade a esse instrumento. A interpretação sistemática do dispositivo leva a concluir que o legislador buscou evitar que a empresa, ao obter a redução de suas obrigações, fosse onerada por tributos que poderiam inviabilizar a própria reestruturação. Trata-se, portanto, de norma especial, com nítido caráter de incentivo à recuperação da atividade econômica.

Ao contrário do que ocorre na recuperação judicial, a Lei n. 11.101/2005 não prevê, para a recuperação extrajudicial, regra específica que afaste a incidência de tributos sobre o haircut. A ausência de disposição expressa tem levado o Fisco Federal a sustentar que a exclusão não se aplica ao instituto da recuperação extrajudicial, por se tratar de hipótese restrita ao plano judicialmente homologado.

Do ponto de vista técnico, esse argumento encontra respaldo na literalidade da norma, que menciona de forma expressa apenas a recuperação judicial. Contudo, sob a ótica da interpretação teleológica, questiona-se se haveria razoabilidade em tributar operações realizadas com o mesmo objetivo – a superação da crise empresarial – apenas por terem sido formalizadas em um procedimento menos oneroso ao Poder Judiciário.

Admitir a tributação nessa hipótese pode representar tratamento desigual entre institutos com finalidades convergentes, ferindo o princípio da isonomia tributária (art. 150, inciso II, da Constituição Federal). Além disso, a incidência de PIS e Cofins sobre descontos concedidos em recuperação extrajudicial contraria a própria lógica do instituto, cujo propósito é fomentar a negociação preventiva e consensual entre as partes, evitando a judicialização.

Nesse contexto, ainda que inexista norma expressa, é possível sustentar a não incidência de PIS e Cofins sobre o haircut em recuperações extrajudiciais com base em três fundamentos principais:

a) Natureza jurídica do haircut – a redução de dívida não se enquadra no conceito de receita, pois não implica ingresso de novos recursos na empresa. O ganho contábil não reflete aumento real do patrimônio líquido, mas apenas redução do passivo, não configurando “faturamento” ou “receita bruta” para fins das contribuições.

b) Interpretação sistemática e finalística – o art. 50-A da Lei n. 11.101/2005 revela a intenção do legislador de desonerar a recuperação empresarial, garantindo sua efetividade. A ausência de menção à recuperação extrajudicial não deve conduzir à tributação, sob pena de esvaziar a função do instituto.

c) Princípios constitucionais – a tributação do haircut pode inviabilizar a reestruturação e afrontar a função social da empresa (art. 170, IV, da Constituição Federal) e a preservação da atividade econômica. A interpretação conforme a Constituição recomenda a aplicação analógica da isenção prevista para a recuperação judicial à extrajudicial.

Fato é que a distinção entre recuperação judicial e extrajudicial, para fins de incidência de PIS e Cofins sobre o haircut, não se justifica à luz da finalidade comum dos institutos. Embora a Lei n. 14.112/2020 tenha expressamente afastado a tributação para a recuperação judicial, a lacuna normativa em relação à extrajudicial não deve ser interpretada como autorização para tributar.

Do ponto de vista jurídico-constitucional, portanto, a interpretação teleológica e sistemática conduz à conclusão de que o ganho obtido com o haircut na recuperação extrajudicial não configura receita tributável, devendo prevalecer a não incidência, sob pena de violação aos princípios da isonomia, da função social da empresa e da preservação da atividade econômica.

A Faculdade Brasileira de Tributação não se responsabiliza pelo conteúdo expresso neste artigo. As opiniões e informações apresentadas são de total responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a posição ou os valores da instituição. Recomendamos que os leitores considerem, criticamente, as informações aqui contidas.

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