Durante décadas, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) foi o paradigma dominante da tributação sobre o consumo. Criado para substituir impostos cumulativos e facilitar o controle tributário, o IVA cumpre ainda hoje um papel central em sistemas tributários de dezenas de países. Contudo, na era da digitalização financeira e da automação dos pagamentos, o IVA começa a mostrar sinais de obsolescência.
A lógica do crédito e débito em cadeia, embora eficiente em sua época, gera altos custos de conformidade, pressiona o capital de giro das empresas e multiplica disputas interpretativas. A chegada de tecnologias como PIX, nota fiscal eletrônica e, em breve, o Drex (real digital), permite repensar radicalmente esse modelo. Nesse contexto, ganha destaque o split payment, um sistema em que o imposto é automaticamente segregado e repassado ao Fisco no momento do pagamento da transação — eliminando a necessidade de crédito tributário e reduzindo drasticamente a complexidade.
O split payment já é realidade no Brasil — mas dentro do IVA
A reforma tributária aprovada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 reconhece o potencial do split payment e o incorpora ao novo sistema de IVA dual (IBS e CBS). A legislação complementar prevê que, especialmente em transações eletrônicas, o tributo poderá ser separado automaticamente do valor da operação e remetido ao Fisco por bancos e intermediários financeiros.
Trata-se de um avanço importante. Mas é essencial notar que essa inovação ocorre dentro da lógica do IVA, mantendo a cadeia de créditos e débitos. Ou seja, embora a inadimplência possa ser reduzida, os custos operacionais com escrituração, classificação de produtos e recuperação de créditos permanecem. Sem dúvida, a administração de créditos no IBS/CBS é uma fonte enorme de complexidade, sujeita a interpretações que irão demandar o Comitê Gestor do IBS, a Receita Federal e o CARF.
A opção de manter o IVA com split payment foi prudente, especialmente para garantir estabilidade na arrecadação dos estados e municípios. No entanto, ela não deve encerrar o debate sobre modelos ainda mais simples, como o Imposto sobre Vendas com split payment puro (IVV) — que eliminaria a necessidade de créditos e ofereceria ganhos de eficiência tanto para empresas quanto para o Fisco.
A objeção clássica: como evitar a evasão no varejo?
Um dos principais argumentos contra impostos sobre vendas no varejo é a dificuldade de fiscalizar milhões de transações de pequeno valor, principalmente quando há pagamentos em dinheiro. Essa é, de fato, a barreira mais relevante à adoção do IVV.[1]
Contudo, o contexto brasileiro mudou profundamente. Mais de 70% das transferências financeiras entre pessoas físicas e jurídicas já são feitas via PIX. Com a chegada do Drex, a tendência é que pagamentos digitais se tornem não só mais comuns, mas também mais programáveis — possibilitando a automação completa do recolhimento tributário via smart contracts.
Ou seja, não é preciso abandonar o varejo como base de incidência. É possível, sim, usar a tecnologia para tornar a arrecadação mais segura e instantânea — especialmente em setores como marketplaces, serviços por aplicativos, transporte urbano e alimentação fora do lar, onde o grau de digitalização já é elevado.
Por que continuar estudando o IVV com split payment?
Nosso modelo atual de tributação do consumo (ICMS, IPI, ISS, PIS e Cofins) exige que empresas mantenham controles contábeis complexos, sistemas caros de compliance fiscal e consultorias especializadas para evitar autuações. O novo sistema IBS-CBS vai simplificar parte desse processo, mas ainda dependerá da apuração custosa, compensações e regras de crédito nem sempre triviais.
O IVV com split payment, por outro lado, poderia eliminar a maior parte dessas exigências, ao cobrar o imposto de modo semelhante à retenção na fonte, sem que a empresa precise apurar nada ou quase nada. Pode-se dizer que isso:
(I) reduz drasticamente os custos de cumprimento de obrigações para o contribuinte, sendo tal economia passível de utilização como investimento, contratações, consumo etc.;
(ii) aumenta a efetividade arrecadatória, ao diminuir o espaço para fraudes;
(iii) simplifica auditorias e fiscalização, ao centralizar os dados nas plataformas de pagamento;
(iv) melhora o ambiente de negócios, especialmente para pequenos empreendedores.
Próximos passos: pesquisa aplicada e pilotos controlados
O Brasil já tem a infraestrutura básica para testar esse modelo. PIX, nota fiscal eletrônica, APIs bancárias e Drex formam um ecossistema pronto para inovações. O que falta agora é:
(a) simular cenários de arrecadação e impacto fiscal, para entender riscos e oportunidades;
(b) implementar projetos-piloto em setores específicos, como e-commerce e serviços digitais;
(c) avaliar o efeito sobre custos de conformidade das empresas;
e sobretudo, (d) estudar o potencial antifraude real do split payment em ambiente varejista com pagamentos digitais.
Essas etapas não exigem ruptura. Elas podem e devem ser conduzidas em paralelo à implementação do novo sistema IVA brasileiro, como forma de preparar o terreno para uma futura transição, se os resultados forem positivos.
Conclusão: para onde vamos?
A introdução do split payment no IVA brasileiro é um passo promissor, mas ainda conservador diante do que a tecnologia permite. O Brasil pode liderar uma transformação mais profunda na tributação sobre o consumo, não apenas ajustando o modelo atual, mas repensando suas bases com foco em simplicidade, eficiência e inteligência fiscal.
Para isso, é fundamental investir em pesquisa aplicada, desenvolver protótipos, envolver o setor privado e preparar o Fisco para um futuro que já começou. O IVA foi uma solução brilhante no século XX. Talvez, no século XXI, o imposto sobre vendas com split payment se torne a resposta certa, na hora certa.
[1] É importante lembrar que tanto no IVA como no IVV quem suporta o ônus do tributo é o consumidor final. O IVV é adotado nos EUA com o nome de Retail Sales Tax, é administrado pelos estados e as alíquotas costumam ser menores que 10%.